Às vezes II (ou Verificação empírica)

Às vezes preciso tocar a primeira superfície dura ao meu redor para ter certeza se, de fato, vivo as coisas que vivo ou se só as imagino.

Às vezes toco na brasa quente do incenso só pra saber se o fogo ainda queima.

Pergunto-me, também às vezes, se sou eu mesmo quem terá de viver apenas com as suas memórias até o fim dos meus dias, caminhando à sombra do que poderia ser noutra realidade.

Gosto do canto dos pássaros de onde moro, dos quais não me recordo espécie, pois eles têm um ritual a lembrar-me que existe realidade mais tangível do que câmbio flutuante, bolsas e afins.

Quando toco ponta de agulha e sangro não lamento. A dor do furo lembra-me que estou vivo e são e que ainda não cedi à loucura coletiva do elogio às piores perversidades humanas.

Quando percebo-me ignorante não me enraiveço, pois lembro-me que a dúvida (não a ignorância) é a maior dádiva da inteligência.

Tudo isso dói. Dói, porém, ao nível do suportável, como condição sem a qual o vício da realidade não seria satisfeito.

Às vezes, sinto fissura por realidade mais tangível e faço coisas que me aproximam dela.

Por isso, às vezes, preciso tocar a primeira superfície dura ao meu redor, ou a brasa quente de um incenso, só pra saber se vivo (e não imagino) e se o fogo ainda queima.


Arnaldo Ventura


Ouça 'Insight', áudio-poesia, aqui.

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