ouço


tenho um problema de audição.
não de surdez,
mas de audição:
eu ouço demais...

ouço o tempo,
ouço o vento,
ouço o ar e o eco
a um passo do rompimento.

ouço o som dos objetos caindo
com a força do vendaval,
ouço diabos de gravata ou batina
prevendo o apocalipse no final.

ouço as iscas dos telejornais,
a taquicardia e a tensão das massas;
ouço o chicote nas costas do fraco
o tapa nas costas do amigo no abraço.

ouço estranhos no trem,
ouço o silêncio.
por deus e pela terra que me comerá:
eu ouço até o silêncio!

ouço meus medos,
ouço meus monstros,
ouço e recito
meus modos, meus mantras.

até o sussurro dos mortos eu ouço;
da criança que fui, o soluço,
a gota na mesa: uma lágrima;
o atrito entre esta e a próxima página;

do calor que resta,
o crepitar da chama
da madrugada em claro,
o estalido de minha cama.

Arnaldo Ventura


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